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Menon

O dia em que Aguaí parou, com dois campeões

Menon

29/05/2019 12h05

 

Foi a semana mais estranha na vida da cidade. A semana da cisão. Irmão passou a desconhecer irmão. Mulheres dormiram de calça jeans. O padre brigou com o coroinha. Noivados foram desfeitos. Jantares foram salgados. Seu Zé e dona Maria se separaram após 60 anos de casamento feliz. A pedra da praça viu brigas como nunca antes. Nunca Aguaí ficou tão dividida em um clássico Boca x River como naqueles dias. Aliás, nem Buenos Aires ficou.
Era a semana da terceira partida da decisão. O campeonato havia sido um sucesso. Campeonato de pontos corridos, com dez times. Gramado ótimo e o estádio sempre lotado. Boca e River começaram a se destacar desde o início. Cada um ganhou 24 das 26 partidas. Deixaram para trás esquadrões como Vila Braga, Vila Nova, Siriri, Curtume, Real Saragossa (assim mesmo), Dínamo, Cruzeirinho, CBD, Comercial, Botafogo, Bangu e São Luiz. Só empataram quando se enfrentaram. O desnível, naquele ano, era muito grande.
As campanhas, ambas gloriosas, eram diferentes. Boca tinha 99 gols, quase quatro por jogo. O River havia sofrido só oito gols no ano. Todos de pênalti. Era o confronto entre um ataque dos sonhos e uma defesa intransponível.
Crush e Pompeia tinham muito a ver com isso. Eram reforços pagos a preço de ouro. Crush era um atacante espetacular. Rápido, técnico e com chute forte. Havia jogado na Bambozzi, na Usina São João, Operário de Tambaú, Palmeirinha de São João, Lemense e Ferroviária. Agora, ganhava meio salário por jogo, além de passagem de ônibus e meia dúzia de cervejas. A cada jogo, a cada gol, diziam que se não fosse o gosto pela cerveja, Crush teria jogado na Capital.
Pompeia jogou. No Juventus, no Nacional e quase na Portuguesa. Era um goleiro troncudo, mas com agilidade impressionante. Sabia fechar o ângulo, impedir o chute, mas também fazia defesas plásticas, saltava muito.
Nos dois jogos da decisão, Pompeia levou vantagem. Terminaram zero a zero. E, nesse domingo, na final, as apostas ferviam. Crush marcaria em Pompeia?
Não eram os únicos craques em campo. Os times haviam se reforçado, cada um de acordo com seu DNA. O River, para reforçar ainda mais a defesa, tinha trazido Zungão, da Vila Braga. O Boca, Valdir Loiro, endiabrado ponta, para fazer dupla com Crush. Jogaço. Se não houvesse decisão nos 90 minutos, haveria pênaltis.
O Leonardo Guaranha estava lotado desde o meio dia, mesmo o jogo sendo às 16 horas. O sol estava forte e a festa bonita. Sanin vendeu 1657 sorvetes minissaia. Argemiro Doceiro precisou de coco extra para seus doces. Vendeu 1890 cocadas. Nas quatro horas antes da partida, Tião Cesário tocou Obladi Obladá dos Beatles por 786 vezes.
Os times entraram em campo. Cada um com sua madrinha, Maria Eugênia pelo Boca e Dalvinha Roso pelo River. Zeca do Anísio era o árbitro. João Neguinho, um dos bandeirinhas. O outro, eu não sei.
Uhhhhhhhhh era o que mais se ouvia. Jogo muito tenso, as torcidas se provocavam, mas sem briga alguma. 10, 20, 30 minutos e nada de gols.
Havia algo, diferente, porém. Pompeia não estava bem. Havia falhado em três cruzamentos na área, um ele nem viu e outro socou para frente, como alguém inexperiente. Zungão salvou uma. Paulo do Nofre, a outra.
No terceiro, não houve salvação. A bola rodou pela área, chegou a Tiãozinho Canela, que rolou para Crush. Gol, sem dúvida. Nada disso. O matador errou. O chute saiu fraco.
No final do jogo, o domínio era do River. O Boca, do superataque só se defendia. Fumaça, Toró, Dirceu Costa, Carlos da Carolina e até os atacantes estavam recuados. Zecão dava pontapé em cima de pontapé. Tininho cobrava todas e nada de gol. Só Crush não havia recuado. Estava na linha do meio do campo.
Janjão tabelou com Tatu e Mirtu. A bola chegou à Reduzida, que foi desarmado por Dirceu.
Jogada limpa, no velho estilo. Desarmou, levantou a cabeça e lançou. Para Crush, que tinha o campo todo à sua frente, pois até a zaga do River pressionava pelo gol do título.
Zeca olhou para João Neguinho, que não levantou a bandeira. Não havia motivo, Crush estava em seu campo.
Dirceu lançou e Crush correu. E o mundo parou. Pelo menos o mundo que interessava naquele momento. O mundo aguaiano. Era Crush contra Pompeia. Boca contra River. E era possível sentir o silêncio pesado. Ninguém falava, ninguém respirava. Paulo Taça, Biro Pozzer, Beto Curuzu, Lima, Cristiano, Kavuco, Jaílton, Maurinho, Cleidinha – que já havia prometido desconto para cinco clientes por conta do título não interessa de quem – Padre Gerado, dona Egle, ninguém falava. Era hora da decisão.
Mas, como corre devagar Crush.!! "Vai filho da puta", grita Paulo Grillo, mas ele vai lento. Mais lento apenas que Pompeia, que não deixa o gol.
Crush corre e pensa na pensão atrasada, na dívida no bar, na futura visita do agiota, corre e sua, tem medo, mas corre, menos do que devia, mas corre. P

não sabe se vai ou se fica, pensa em Isildinha que veio com uma conversa de fazer cursinho, pensa em como devia ter guardado dinheiro, se arrepende de tanta boêmia, valia a pena mesmo pagar tanta coisa para Valdirene, balconista do Varejão da Fábrica, eu nunca fiz isso antes, pensam os dois, que vergonha, foda-se tem que ser agora, já estou com quase 40, ai meu Deus, tem de ser agora……
Sai, morfético, que eu to vendido
Chuta, lazarento, que eu tô comprado.
Os gritos romperam o silêncio. E o que se ouviu foi um pega pega pega pega. Crush aumentou a velocidade de repente, largou a bola e pulou o muro. Pompeia foi junto, há quem jure que um deu a mão para o outro.
A cidade os perseguiu por um tempo, até a reconciliação. Naquele ano, Aguaí teve dois campeões. E dormiu feliz. A raiva ficou apenas para os forasteiros. E Cleidinha faturou muito.

Sobre o Autor

Meu nome é Luis Augusto Símon e ganhei o apelido de Menon, ainda no antigo ginásio, em Aguaí. Sou engenheiro que nunca buscou o diploma e jornalista tardio. Também sou a prova viva que futebol não se aprende na escola, pois joguei diariamente, dos cinco aos 15 anos e nunca fui o penúltimo a ser escolhido no par ou ímpar.Aqui, no UOL, vou dar seguimento a uma carreira que se iniciou em 1988. com passagens pelo Trivela, Agora, Jornal da Tarde entre outros.