João Saldanha, um século de coragem
Menon
04/07/2017 14h15
João Saldanha nasceu em 3 de julho de 1917. Há 100 anos e um dia. Aqui vai um texto espetacular do amigo Ednilson Valia. A caricatura é do genial Ique
Após 47 anos, a pergunta é a mesma: quem derrubou João Saldanha na Seleção Brasileira?
Ednilson Valia
O cartola que tomou está atitude foi João Havelange (morto em 2016) e o demitido João Saldanha, que em 03 de julho de 2017, comemoraria o seu centenário se estivesse vivo ( João Saldanha faleceu em 1990).
O gaúcho de Alegrete aceitou o convite da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), para assumir o comando do time brasileiro após o pior resultado da Seleção em uma Copa do Mundo: o fiasco na disputa do mundial de 1966, quando o escrete nacional foi desclassificado na primeira fase. Posteriormente, amistosos com resultados pífios e o vai e vem de técnicos agravaram a crise e a descrença na Seleção Brasileira.
Após a competição onde a Inglaterra sagrou-se campeã pela primeira vez, Saldanha empunhou o seu microfone no rádio e na TV e escrevia suas colunas no "Jornal do Brasil" denunciando e acirrando com críticas ferrenhas a desorganização e a corrupção do futebol brasileiro.
Sonia Saldanha, filha do jornalista e técnico, lembra do momento que o gaúcho comunicou a família sobre o convite de comandar a Seleção Brasileira: "Papai reuniu todos os filhos e disse: "Eu vou aceitar, mas não vou terminar o trabalho. Eu tenho contribuição para dar. Eu estou apenas informando a vocês" ".
Em 1969, o Brasil vivia uma ditadura militar cujo Presidente da República era um General que gostava muito de futebol, Emílio Garrastazu Médici. João era militante do Partido Comunista Brasileiro, participou de revoltas populares, não se negava a criticar o regime em plena censura da imprensa. Então, por que convidá-lo?
O próprio Saldanha havia declinado dois convites para assumir o comando da Seleção Brasileira (1958 e 1968). Mas em 1969, um pessimismo tomava conta do time bicampeão do mundo, que havia feito uma péssima campanha em 1966 e o país vivendo uma ditadura militar violenta, com presos políticos e mortes por tortura. Saldanha acreditava que poderia ser útil para política e para o futebol.
"A ditadura queria usar o futebol como cortina de fumaça para os crimes políticos que cometia e incrementava a campanha ufanista do "Brasil ame-o ou deixe-o" e João não iria fazer esse papel de puxa-saco dos militares", diz André Iki Siqueira, jornalista e biógrafo de João Saldanha.
André na biografia escrita em 2007 – "João Saldanha, uma vida em jogo"- publica um depoimento de Havelange negando que a escolha de João tenha sido dele: "Quando tivemos de compor a comissão técnica da CBD para preparar a seleção, como presidente dei a chefia ao Dr. Antonio do Passo que teve a liberdade de fazer a escolha dos elementos de compô-la. Portanto quem fez o convite ao Sr. João Saldanha foi o Dr. do Passo".
No mesmo livro, André colheu o depoimento do jornalista Luiz Mendes, falecido em outubro de 2011: "Pois Havelange colocou justamente o inimigo no poder, tirou desse inimigo o poder de fogo. E todos da imprensa não contestaríamos a escolha de um companheiro nosso, que tinha um currículo de técnico e havia sido campeão pelo Botafogo em 1957. Não dava para contestar isso".
O jornalista Juca Kfouri, colunista da Folha de S.Paulo , tem o pensamento na mesma linha de Mendes: "Era um jeito de tentar a cumplicidade da imprensa".
Após o sucesso de João Saldanha nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1970, a Seleção Brasileira conquistou vitórias nos seis jogos que disputou. Cem por cento de aproveitamento.
Para a CBD, a crise no futebol havia terminado e outra começava. O temperamento forte de João com a forte influência do Governo Militar na Confederação Brasileira de Desportos (Em 1979, passou a se chamar Confederação Brasileira de Futebol (CBF)), que não via com bons olhos um militante comunista ter a oportunidade de conquistar um título de Copa do Mundo.
O jornalista Carlos Ferreira Vilarinho, autor do livro "Quem derrubou João Saldanha", da editora Livrosdefutebol.com, publicado em 2010, contou a reportagem um episódio que contribuiu para a demissão: "Em 28 de fevereiro de 1970, Armando Nogueira informou no Jornal do Brasil que uma das "fixações" de Médici era o artilheiro do Atlético Mineiro, cuja convocação já defendera numa conversa com o chefe de relações públicas da presidência, um coronel do Exército (palpite publicado por Armando Nogueira em coluna de 28 de janeiro). Médici sustentava que na Seleção havia lugar para Dario "como precioso suplente". Pois bem, em três de março, um repórter da TV Gaúcha, afiliada da TV Globo, lançou a pergunta desafiadora: "Saldanha, o presidente Garrastazu Médici está no Rio Grande do Sul e ele parece que havia sugerido o nome de Dario para ser convocado. O que você acha da sugestão do presidente? Saldanha respondeu: "O Brasil tem oitenta ou noventa milhões de torcedores e gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos. Somos gremistas. Gostamos de futebol. E nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time. Então, tá vendo que nós nos entendemos muito bem"".
André Iki Siqueira não tem dúvidas sobre quem tomou a decisão de demitir o treinador: "Eu não tenho dúvida que João foi derrubado do comando da Seleção pelos militares, mas não há documentos que comprovem uma ordem de Médici, a quem João considerava o maior assassino da história do país por ter permitido a morte de vários de seus camaradas do PCB e de outras organizações de esquerda, além de seqüestros e torturas, sempre denunciadas por João, mesmo enquanto dirigia a Seleção. O sucesso de João na Seleção virou um problema de Estado".
O Ministério da Educação e Cultura (MEC), que tinha como titular da pasta, Jarbas Passarinho. Também o responsável à época pela para "tutoriar" a CBD.
A filha de João, Sonia, lembra que o principal opositor as ideias do pai era "O Ministro que voava (Passarinho)", este que não admitia que um comunista ganhasse a copa, representando o povo e a seleção.
Uma versão diferente tem o jornalista Vital Bataglia, então editor e repórter do Jornal da Tarde: "Não, não foi o ditador Médici e sim o próprio João. Ele não agüentava mais o relacionamento com Pelé e outros jogadores".
A polêmica entre João Saldanha e Pelé causou muita agitação na imprensa. No documentário "João" com direção de André Iki Siqueira e Beto Macedo, de 2008, tem um depoimento do Rei do Futebol em 1969, aprovando João: "Porque ele (Saldanha) não é técnico de nenhuma equipe. (Saldanha) não tem vínculo com nenhuma equipe do Brasil, ele pode fazer e desfazer sem preocupação de agradar A ou B e é por isso que sou a favor totalmente de Saldanha na Seleção ".
"A miopia de Pelé (na vista direita – 2,2 graus) fora diagnosticada pelos médicos da CBD em 1958. Quando acabou a reunião do dia 17 de março de 1970 – que consumou sua demissão – Saldanha tomou o elevador e deixou o prédio da CBD. Antes de entrar no carro, revelou: "Saí porque no meu time Pelé não jogava mais. Nas 17 partidas pela seleção brasileira em que ele atuou esteve sempre mal. Nos jogos noturnos, então, nem se fala. O crioulo perdia inteiramente a visão de campo. Expliquei ao médico [Lídio Toledo] que assim que Pelé voltasse à sua melhor forma física, teria chance de voltar ao time. Como estava é que não seria mais possível. Pessoalmente, Pelé nada tem a ver com isso. Se está mal, não é por culpa dele. Jamais poderia acusá-lo de má vontade comigo", explicou Carlos Vilarinho sobre os acontecimentos entre o camisa dez e o técnico.
André Siqueira ressaltou que mídia não tratou o fato com isenção:
"O episodio foi um dos mais amplificados e distorcidos por setores da mídia. Nenhuma chance do João deixar Pelé de fora do time, nem que só tivesse um olho. Ele adorava o Pelé e sabia do talento e da força do melhor jogador do mundo. Entrevistei o Pelé para o meu livro e sei que ele também gostava do João".
Em depoimento a TV Brasil, no programa Mundo da Bola, em 02 de julho de 2017, o atleta do século, segundo o jornal francês L'Equipe , falou sobre Saldanha: "Estávamos juntos na Seleção Brasileira e ele (Saldanha) tinha uma grande capacidade de unir o grupo. Ele disse que eu tinha miopia e eu tinha mesmo".
Para Battaglia o capítulo derradeiro da demissão foi um programa na TV Globo: "O Armando Nogueira fez criticas fundamentais ao técnico no que se refere à parte tática, e acima disso, vir a publico para dizer que "Pelé estava enxergando mal" ".
O bairrismo entre a imprensa Carioca e paulista teve interferência na continuidade do trabalho na Seleção Brasileira. Juca Kfouri lembrou que os veículos de comunicação nunca deixaram de criticar João Saldanha: "principalmente em São Paulo, talvez por ciúme".
Vilarinho ressaltou: – A imprensa mantinha com Saldanha uma relação de amor e ódio. Quando ele assumiu o escrete, a imprensa paulista cuspiu fogo. Por exemplo, o Jornal da Tarde deu em manchete: "Nós perdemos a Seleção". A Gazeta deu em primeira página: "João Saldanha, jornalista carioca e técnico por acaso". Saldanha costumava reagir às provocações dos repórteres com ironia e deboche. Em agosto de 1969, na Colômbia, chegou a prometer que não daria mais entrevistas.
Sonia lembra que o pai tratava com desprezo os jornalistas que utilizavam de outros argumentos para criticá-lo. "Ele (Saldanha) tinha o temperamento muito forte. Não aceitava as provocações dos "coleguinhas". A sua escolha já desagradou a todos. Na hora do jogo não mudava o esquema, não fazia mistério. Isso é papo para vender jornal. Ele tinha tudo na cabeça", diz a saudosa filha.
Carlos Alberto Parreira, técnico campeão do mundo pela Seleção Brasileira em 1994, fazia parte da comissão técnica em 1970, como auxiliar do preparador físico, atendeu ao repórter por telefone.
Parreira estava em Londres e teve o sono interrompido, mas atendeu a ligação com educação e cortesia. Carlos Alberto elogiou a capacidade de Saldanha de unir o grupo e a sua capacidade de comunicação. Em contrapartida disse que o esquema tático de Zagallo melhorou o coletivo do time.
Zé Maria, então jogador do Corinthians, lateral direito reserva de Carlos Alberto Torres na Copa de 70, confirma a simpatia dos jogadores por Saldanha, mas discorda de Parreira sobre a parte tática: "Nós adorávamos o João. A definição do time titular e a cobrança dos jogadores reservas para uma melhora técnica deixou todos tranqüilos. Além de deixar o esquema mastigado para o Zagallo".
Segundo Carlos Vilarinho, Armando Nogueira também comentou as alterações táticas entre Zagallo e Saldanha: "A alteração de estrutura em relação ao comando anterior, de João Saldanha, é clara, pois, enquanto a orientação dada até aqui destacava a agressividade com finesse, daqui em diante, o padrão ofensivo deverá ser substituído por uma cautela que talvez transforme em contra-atacantes os atacantes da equipe".
"Meu pai recebeu alguns jogadores, entre eles, Gérson, Brito que foram ser solidários e papai pediu para eles não tomarem nenhuma atitude que poderia prejudicá-los", retratou Sonia Saldanha logo após a demissão de João.
O ex-jogador Zé Maria lembrou que Saldanha despediu-se individualmente de alguns jogadores com palavras de encorajamento.
Em abril de 1969, Antônio do Passo havia declarado: "Estão enganados aqueles que pensavam que Zagalo seria o técnico, caso Saldanha não aceitasse o convite. O treinador seria Yustrich, sendo Zagalo o terceiro nome de minha lista".
"No dia 17 de março, entretanto, Yustrich foi descartado – para grande decepção dele e do Flamengo – pois quando surgiram os boatos de que ele poderia assumir, os jogadores disseram que se ele fosse o escolhido "arrumariam as malas e cada um iria para sua casa"", afirmou Vilarinho.
Yustrich é um caso a parte na história da demissão de Saldanha. Vilarinho detalha o "incidente" com então treinador do Flamengo: "Yustrich, era um agente provocador fascista. No dia 12 de março de 1970, ainda irritado com o cancelamento do amistoso contra o Flamengo (marcado para o dia 15), Saldanha recebeu de Antônio do Passo a notícia da marcação de um jogo-treino contra o Bangu, no dia 14. Entretanto, chegaram ao seu conhecimento os novos insultos de Yustrich, publicados na imprensa de São Paulo e da Guanabara. À noite, armado com um revólver, Saldanha invadiu a concentração rubro-negra para tirar satisfações, mas não o encontrou. Na sexta-feira, Saldanha só não agrediu um repórter porque foi contido por outros jornalistas. No sábado (dia 14), jogando de forma displicente, o Brasil só empatou com o Bangu: 1×1. No mesmo dia, Yustrich deu o caso por encerrado, mas avisou: "O Exército pode até intervir na Seleção". Sua fonte era "quente". "De fato, Jarbas Passarinho (ministro da Educação) determinou a um dos auxiliares da preparação física (o capitão Cláudio Coutinho) que assumisse o lugar de Russo e lhe disse que a comissão ia ser trocada, pois já tinha acertado tudo com Havelange".
Dino Sani, amigo de Saldanha e técnico do Corinthians, em 1969, foi o primeiro nome a ser cogitado para ocupar o lugar de Saldanha. "Eu não quis pegar o emprego, pois ele (Saldanha) era meu amigo, a amizade era boa. O Saldanha disse pra mim que deveria ter aceitado ".
Outra preocupação dos militares, caso João Saldanha tivesse ficado no cargo e conquistasse o tricampeonato mundial o que poderia significar o título para no Brasil?
Vilarinho tem uma pergunta para buscar a resposta: "Há quem diga que Saldanha foi demitido porque nunca permitiria que os jogadores subissem a rampa do Palácio do Planalto para um encontro com Médici. Trata-se de uma enorme tolice, pois técnico algum teria esse poder. Todas as vezes que a seleção brasileira conquistou a Copa do Mundo, os jogadores, assim que voltaram ao Brasil, foram recebidos pelo presidente da República, fosse ele civil ou militar. E Saldanha? Teria se recusado a subir a rampa? Ninguém sabe a resposta."
"Um comunista histórico conquistando uma Copa do Mundo e denunciando a ditadura teria muita força, principalmente no exterior. Mas acho que esse era um pensamento secundário. Ele aceitou o desafio, realizou um trabalho brilhante, seriamente, inquestionável, e queria ganhar a Copa, claro. Mas sabia que teria um canhão na mão contra os militares", refletiu André Siqueira.
Quem derrubou João Saldanha do cargo de técnico da Seleção Brasileira ficará para a conclusão do leitor. Sonia Saldanha faz uma síntese (substantivo do qual o pai era mestre nos seus comentários no rádio e na TV ou nas suas colunas nos jornais), sobre a falta que João Saldanha faz: "Nenhum jornalista será igual a ele".
Sobre o Autor
Meu nome é Luis Augusto Símon e ganhei o apelido de Menon, ainda no antigo ginásio, em Aguaí. Sou engenheiro que nunca buscou o diploma e jornalista tardio. Também sou a prova viva que futebol não se aprende na escola, pois joguei diariamente, dos cinco aos 15 anos e nunca fui o penúltimo a ser escolhido no par ou ímpar.Aqui, no UOL, vou dar seguimento a uma carreira que se iniciou em 1988. com passagens pelo Trivela, Agora, Jornal da Tarde entre outros.