O basquete que há no Flamengo de Jorge Jesus
UOL Esporte
06/11/2019 04h05
Amigos,
o excelente texto abaixo é da Marina Andrade. Conheçam seu trabalho no twitter (@damarinaandrade)
Exageradamente reverenciado por alguns e, em reação, ridiculamente menosprezado por outros, o nome de Jorge Jesus tem despertado paixão e fúria, sentimentos que pouco contribuem para uma análise estritamente técnica que explique o que, afinal, o comandante do Flamengo tem de tão diferente.
Intensidade, posse de bola, jogar para vencer, objetividade, entre outros adjetivos comuns que tentam justificar o encantamento que o estilo de jogo do Flamengo produz em que assiste às partidas, nada disso é inédito no futebol brasileiro. Reclama, com razão, aquele que não se satisfaz diante de tais argumentos. A verdade é que estamos diante de uma outra coisa no futebol, mais precisamente um outro esporte: o basquete.
Há muitos Flamengos possíveis nas mãos de Jorge Jesus. O mais brilhante deles reservou para uma histórica quarta-feira de semifinal da Libertadores, contra o Grêmio, um show não apenas de futebol, mas de conceitos de basquete, em pleno gramado do Maracanã.
Jesus bebe – e aplica perfeitamente – movimentações orgânicas e ensaiadas típicas do basquetebol em lances de ataque, seja em bola parada ou não, algo que a maioria jamais presenciou no futebol. Com isso, faz o time jogar decisivos segundos à frente do adversário e do tempo normal do jogo na cultura brasileira. Não há muito mistério: o diferencial de Jorge Jesus é a movimentação sem a bola e o ganho de tempo que o Flamengo consegue extrair disso.
O ponto de partida mais básico no basquete é o fundamento do drible – nome dado a cada quique da bola no chão. O que o futebol chama de toque na bola, o basquete chama de drible. Quanto menos um jogador de basquete driblar, driblando de fato ou não, melhor. À exceção do armador e de um dos alas em transição ofensiva, todo o resto deve fazer a bola correr. Quanto menos um jogador detiver a bola, mais rápido o jogo flui, até encontrar o atleta em melhor condição para o arremesso ou infiltração. Como transportar essas ideias para o futebol?
Do mesmo jeito. Todo toque na bola é um drible. Tudo é um drible. Filipe Luís, um dos armadores do Flamengo, é quem mais deixa claro isso. Cada toque do lateral na bola é uma ameaça de passe, que dribla a possibilidade de reação do marcador – que reage o tempo todo. Éverton Ribeiro, outro armador, bate a bola rápido e bem baixinho. O defensor dificilmente consegue tomar.
Já Gérson, um típico ala, dribla o marcador com o corpo antes mesmo de dominar a bola. Raramente conduz. Precisa receber já livre e acelerar o ritmo. Dois, três toques, se muito. Arrascaeta, outro ala, é aquela bola na zona morta que mal as mãos encaixam e já soltam para outro companheiro. O uruguaio tem como principal função resolver a jogada em um toque. O grande drible é a velocidade.
Rafinha passa repetidas vezes justamente para não receber. Só para atordoar e distrair a linha de marcação, qual um ala percorre o fundo da quadra apenas para ir para o outro lado. O experiente lateral vai, no mesmo movimento, mover um marcador e tirar o ataque do Flamengo de qualquer possibilidade de impedimento. Ele não participa da jogada. A bola irá para Arrascaeta.
Antes de a bola chegar aos pés de Arrascaeta, como se fora isso o sinal do armador indicando qual jogada ensaiada, Bruno Henrique já iniciou o movimento para receber o cruzamento. Ele sabe que virá de primeira. Ele já roubou o tempo do zagueiro, que não sabe. Segundos decisivos, como no basquete.
Arão, Pablo Marí e Rodrigo Caio completam o quarteto de pivôs no garrafão rubro-negro. Só um deles vai na bola. Os outros estão ali apenas para fazer com que esse um esteja livre. Seja por drible de movimentação, seja por bloqueio, o bloqueio do basquete.
Bruno Henrique é o jogador que infiltra para enterrar ou fazer a bandeja. Está ali apenas aguardando a oportunidade de, no primeiro tapa na bola, tirar o adversário do lance na explosão e partir pra dentro. O atacante não domina; é como se ele recebesse o passe com a mesma mão que imediatamente já vai quicar a bola. Bruno Henrique dribla o tempo inteiro, mesmo sem driblar.
Isso faz com que o time do Flamengo jogue alguns segundos à frente do tempo do adversário, o que significa gol. Gabigol, Vitinho, o chute de Diego Ribas que não entrou, todos executam o movimento de finalização em uma velocidade que impossibilite o marcador de chegar, de bloquear, de dar um toco. Precisa ser rápido para que o arremesso, o arremate, seja livre.
Enquanto os outros times recorrem a belos dribles para limpar uma chance de gol, o Flamengo usa o tempo. Jorge Jesus detesta o drible que o futebol brasileiro ama e consagrou. Chama de "notas artísticas", uma voluntariedade que pode dar errado. Um risco desnecessário quando o tempo é um drible tão mais eficaz, que coloca o adversário sempre atrás, ou atrasado, porque o Flamengo está sempre adiantado.
Enquanto a bola está com um, o outro está criando sem a bola. Não é o atleta com a posse da bola quem determina qual jogada vai acontecer. Pelo contrário. Quem escolhe a jogada é justamente o movimento dos atletas. Os jogadores se tornaram meros funcionários da melhor possibilidade de passe que a movimentação – patroa – oportuniza. A bola vai somente aonde quem for receber já estiver indo. Não existe, no basquete, lançar lá na frente para ver se alguém vai na direção da bola. A bola tem que ser na mão. É ela que encontra a trajetória do jogador.
Quem marcar apenas os jogadores do Flamengo irá perder. É preciso marcar a possibilidade de movimentação deles. Algo mais complexo, porque são grandes futebolistas, encantados com um estilo de jogo devotado a cria o imprevisível. Jorge Jesus não é um deus. É um apaixonado pelo basquete – o ataque a cada posse, a intensidade, a relação do jogo com o tempo, as soluções ofensivas – que se gaba publicamente por colocá-lo no futebol. E com razão.
Marina Andrade, jornalista
Sobre o Autor
Meu nome é Luis Augusto Símon e ganhei o apelido de Menon, ainda no antigo ginásio, em Aguaí. Sou engenheiro que nunca buscou o diploma e jornalista tardio. Também sou a prova viva que futebol não se aprende na escola, pois joguei diariamente, dos cinco aos 15 anos e nunca fui o penúltimo a ser escolhido no par ou ímpar.Aqui, no UOL, vou dar seguimento a uma carreira que se iniciou em 1988. com passagens pelo Trivela, Agora, Jornal da Tarde entre outros.